Doze anos depois da aprovação da PEC das Domésticas, que deveria ter garantido os direitos básicos, empregadas ainda vivenciam cenário de abusos.
Maria* (nome fictício) cozinha, limpa, lava, passa e cuida das crianças da casa onde vive e trabalha há mais de 30 anos. Não recebe salário. Em troca do serviço diário, ganha moradia, comida e, vez ou outra, algumas roupas usadas. O que poderia soar como um retrato de 1850, quando a escravidão ainda era legalizada no Brasil, é, na verdade, o retrato das condições em que uma trabalhadora doméstica foi resgatada em Belo Horizonte neste mês.
Leia a íntegra da reportagem
https://www.em.com.br/gerais/2025/04/7127041-quando-o-presente-insiste-em-repetir-o-passado.html
O Notícia em áudio é um podcast do jornal Estado de Minas que lê, aos sábados e domingos, uma grande reportagem para você ouvir no seu tempo. Sem deixar que a pressa do dia a dia atrapalhe a imersão no tema. Afinal, uma boa história merece ser contada e recontada muitas vezes. E em vários formatos.
Reportagem: Sílvia Pires
Locução: Laura Scardua
arte sobre foto de Pixabay
Coordenação: Rafael Alves
#podcast #noticiaemaudio #bh
Maria* (nome fictício) cozinha, limpa, lava, passa e cuida das crianças da casa onde vive e trabalha há mais de 30 anos. Não recebe salário. Em troca do serviço diário, ganha moradia, comida e, vez ou outra, algumas roupas usadas. O que poderia soar como um retrato de 1850, quando a escravidão ainda era legalizada no Brasil, é, na verdade, o retrato das condições em que uma trabalhadora doméstica foi resgatada em Belo Horizonte neste mês.
Leia a íntegra da reportagem
https://www.em.com.br/gerais/2025/04/7127041-quando-o-presente-insiste-em-repetir-o-passado.html
O Notícia em áudio é um podcast do jornal Estado de Minas que lê, aos sábados e domingos, uma grande reportagem para você ouvir no seu tempo. Sem deixar que a pressa do dia a dia atrapalhe a imersão no tema. Afinal, uma boa história merece ser contada e recontada muitas vezes. E em vários formatos.
Reportagem: Sílvia Pires
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NotíciasTranscrição
00:00Olá, eu sou Laura Scarga e este é o Notícia em Alto, um podcast do jornal Estado de Minas
00:06que lê, aos sábados e domingos, uma grande reportagem para você ouvir no seu tempo.
00:12O texto de hoje é da repórter Silvia Pires, quando o presente insiste em repetir o passado.
00:19Maria, nome fictício, cozinha, limpa, lava, passa e cuida das crianças da casa onde vive
00:26e trabalha há mais de 30 anos. Não recebe salário. Em troca do serviço diário, ganha
00:33moradia, comida e, vez ou outra, algumas roupas usadas. O que poderia soar como um retrato
00:39de 1850, quando a escravidão ainda era legalizada no Brasil, é, na verdade, o retrato das condições
00:47em que uma trabalhadora doméstica foi resgatada em Belo Horizonte neste mês.
00:52Na ocasião do Dia Nacional da Empregada Doméstica, celebrado em 27 de abril, histórias
00:58como a dela escancaram as marcas de um ofício marcado pela invisibilidade e exploração.
01:05Mais de 70% das trabalhadoras ainda estão nessa condição, sem acesso a direitos básicos,
01:10como férias remuneradas, INSS ou jornada regulamentada, ou mesmo sem qualquer garantia de direitos
01:17fundamentais, como é o caso de Maria. A identidade da mulher de 63 anos, resgatada
01:23por auditoras fiscais do trabalho ligadas ao Ministério do Trabalho e Emprego, bem como
01:28o bairro onde o caso ocorreu, são mantidas em sigilo para protegê-la das múltiplas violências
01:33e riscos que ainda enfrenta no período pós-resgate.
01:38Segundo a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, que repassou o caso ao estado de
01:42Minas, ela ficou mais de três décadas usando roupas doadas pelos empregadores, vivendo
01:48sob as ordens de um núcleo familiar liderado por um advogado. Trabalhava sem jornada definida,
01:54sem direito a fins de semana, feriados ou férias. A exploração era contínua e institucionalizada
02:01no cotidiano doméstico. A equipe de fiscalização também registrou episódios de violência psicológica,
02:07assédio moral e condições degradantes de moradia. Ela dormia em um cômodo minúsculo
02:13aos fundos da casa, sem ventilação adequada. Questionados, os empregadores alegaram que
02:19ela era tratada como da família. Mas nem mesmo a própria vítima se reconhecia
02:24como tal. A realidade é que a exploração se sustentava sobre a extrema vulnerabilidade
02:30da mulher. Uma vida de privações desde a infância, histórico de maus tratos, rompimento
02:36de vínculos familiares, baixa escolaridade e ausência de acesso a serviços básicos
02:41de saúde. Sua força de trabalho foi trocada por décadas, apenas por abrigo e alimento.
02:48Maria é o espelho do perfil de trabalhadoras encontradas em condições análogas à escravidão.
02:53Mulheres pretas ou pardas, com baixa escolaridade, vínculos familiares frágeis ou inexistentes,
02:59muitas vezes entregues ou doadas, ainda na infância, a família que as criam sobre a lógica
03:05da servidão.
03:06Eu nunca resgatei uma mulher branca, sempre mulheres pretas ou pardas. Normalmente começaram
03:13a trabalhar ainda crianças, muitas sem nunca ter frequentado uma escola. E tem a falsa
03:18ideia de que fazem parte da família. A frase que a gente mais ouve é, ela é como
03:23da família. Mas na verdade são privadas de todos os direitos que os demais membros
03:28da família têm. Relata a auditora fiscal Cíntia Saldanha, subcoordenadora do combate
03:33ao trabalho análogo ao de escravo e coordenadora regional do projeto de fiscalização do trabalho
03:38doméstico em Minas Gerais.
03:41Minas Gerais está entre os estados com o maior número de denúncias de trabalho análogo
03:45à escravidão. Desde o emblemático caso de Madalena Gordiano, resgatada em 2020 após
03:51mais de 40 anos nessa condição, o volume de denúncias aumentou significativamente.
03:57Mais do que combater o trabalho escravo, a superintendência vem atuando para garantir
04:01condições dignas ao trabalho doméstico.
04:04Não há nada mais seguro para conter esse cenário de analogia à escravidão do que
04:09a gente promover o trabalho doméstico decente, digno e sem violência, afirma Cíntia.
04:15A Auditora Fiscal ressalta que a fiscalização do trabalho doméstico ainda é um campo recente
04:20dentro da inspeção do trabalho, iniciada de forma contínua em Minas apenas no ano passado.
04:26Em nível nacional, as fiscalizações integram a campanha pelo trabalho doméstico decente,
04:32vigente desde 2022.
04:34Os próprios empregadores se surpreendem.
04:37Dizem, eu não sabia que vocês fiscalizam casas, só empresas.
04:41A gente tem conseguido marcar uma presença fiscal em uma atividade que nunca foi fiscalizada.
04:47Isso já é um ganho, apesar de não conseguirmos chegar em um número muito grande de trabalhadores,
04:52dado a nossa incapacidade humana mesmo.
04:54Nós somos um número muito pequeno de auditores fiscais de trabalho para fiscalizar um número
04:59tão grande de trabalhadores.
05:01Explica Cíntia.
05:02Hoje, Minas contabiliza cerca de 9,2 milhões de trabalhadores informais, conforme estimativas
05:08divulgadas pela Delegacia Sindical em Minas Gerais, do Sindicato Nacional dos Auditores
05:14Fiscais do Trabalho.
05:15As fiscalizações do trabalho doméstico no Estado se concentram em municípios como
05:20Belo Horizonte, Nova Lima, na Grande BH, Juiz de Fora, na Zona da Mata e Uberlândia,
05:25no Triângulo Mineiro, com vistorias em condomínios verticais e horizontais.
05:30Nessas abordagens, a fiscalização orienta os empregadores e, quando necessário, aplica sanções
05:37relacionadas à formalização, jornada, salários, FGTS e demais obrigações previstas na PEC
05:43das domésticas, aprovada em 2013.
05:47A partir dessas fiscalizações, os empregadores são notificados a apresentar documentos no
05:51domicílio eletrônico trabalhista, para comprovar a regularidade da relação de trabalho.
05:57Ainda sem dados consolidados, já que a campanha se encerra em maio, a Superintendência informou
06:02ao Estado de Minas, que já identificou empregadas domésticas sem registro formal, ausência
06:07de controle de jornada, salários e décimo terceiro pagos com atraso, férias não comunicadas
06:13previamente e FGTS recolhido fora do prazo legal.
06:17O foco da campanha de 2025 é o controle da jornada de trabalho.
06:21Pela Lei Complementar 150, de 2015, o empregador deve registrar a jornada da trabalhadora pelo
06:28E-Social. Entradas, saídas e intervalos devem ser anotados, e horas extras, pagas ou compensadas.
06:35Na prática, segundo Cintia, essa exigência é quase nunca cumprida.
06:40Eles até apresentam folhas de ponto, mas todas com os horários britânicos.
06:45Entrada todo dia às oito, saídas às duas, sem variação.
06:49E a gente sabe que aquilo ali é um ponto fictício.
06:52Inclusive, ele não tem validade jurídica, nem para fiscalização e nem para uma eventual
06:57ação trabalhista, porque ninguém chega todo dia às oito e sai todo dia às quatro.
07:02As variações de horário devem aparecer nesse controle de ponto. Esclare-se.
07:06Marcilene Romano dos Santos, de 45 anos, enxerga na carteira de trabalho assinada um símbolo
07:12de avanço. Um direito que, mesmo tardio em sua trajetória, precisa ser garantido a todas
07:18as mulheres da categoria. Ela começou aos 17, na cidade de Ubá, na zona da Mata Mineira,
07:24como babá. Trabalhou por oito anos na casa da primeira patroa, depois mais dois em outra
07:29residência. Em nenhuma das experiências, ela teve carteira assinada, apesar de seus
07:34pedidos constantes.
07:37Eu pedia para assinarem a carteira, mas ficavam enrolando. Diziam que ia ver isso depois,
07:42que ainda estavam decidindo. Nunca acontecia. Conta.
07:45A primeira vez que teve o nome oficialmente registrado como trabalhadora doméstica foi
07:51apenas depois de se mudar para Belo Horizonte, em 1997. Desde então, não voltou mais à
07:57informalidade.
07:59Hoje, já trabalha há 17 anos na casa de uma família no bairro Alto Barroca, na região
08:04oeste de BH, onde entra às sete e sai por volta das 13h30. Para ela, o que vivencia
08:10hoje na capital, é um contraste com os tempos em que trabalhava no interior.
08:14Comecei porque uma prima falou que estava precisando de uma pessoa. Parei de estudar,
08:19acabei ficando na profissão. Aqui em Belo Horizonte, a maioria é carteira assinada.
08:24Não conheci nenhum que fica sem carteira assinada, afirma Marcilene.
08:28Hoje, com vínculo formal e direitos garantidos, Marcilene é a prova de que o trabalho doméstico
08:34pode e deve ser exercido com dignidade, segurança e reconhecimento. Sua história contrasta com
08:41a da maioria, mas serve de exemplo do que é possível quando se respeita a lei e a
08:46trabalhadora. Ela destaca que o Dia Nacional da Empregada Doméstica deve ser visto como
08:51afirmação da importância da categoria para o país.
08:55A gente vê como um dia de luta. A gente vê também como um dia de conquista, declara.
09:00A filha de Marcilene tem hoje a mesma idade que a mãe tinha quando começou a trabalhar
09:05como empregada doméstica. Foi ela quem a incentivou a voltar a estudar.
09:09Ela ficava no meu pé. Dizia, mãe, volta a estudar, você consegue, nunca é tarde.
09:15Aí eu fui, lembra Marcilene. Moradora do bairro Serra, Marcilene então passou a frequentar,
09:21à noite, as aulas da educação de jovens e adultos, EJA, e não pretende parar por aí.
09:26Quero fazer um curso profissionalizante, inglês, informática e numera.
09:31Apesar de não ser vista como uma primeira opção de carreira, o trabalho doméstico é
09:36a única oportunidade de emprego para muitas mulheres, como foi para Marcilene.
09:40Aos olhos da legislação, há uma década as trabalhadoras domésticas deveriam ter os
09:45mesmos direitos que os demais trabalhadores. Jornada máxima de 44 horas semanais, hora extra
09:51remunerada, acesso ao FGTS, seguro-desemprego, salário-família, adicional noturno e proteção
09:58previdenciária. No papel, tudo está assegurado. No cotidiano, três em cada quatro trabalhadoras
10:05seguem invisíveis a lei. Dados da PNAD contínua do IBGE revelam que, em 2024, 76,4% das profissionais
10:15da área ainda não tinham carteira assinada.
10:20A íntegra desta reportagem foi publicada no jornal Estado de Minas em 28 de abril de
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