Pular para o playerIr para o conteúdo principalPular para o rodapé
  • anteontem
Joel Gonçalves sobreviveu aos perigos das ruas da capital, foi escravizado em fazenda no Mato Grosso do Sul, mas não perdeu a capacidade de sonhar

Leia a íntegra da reportagem
https://www.em.com.br/gerais/2024/12/7018180-homem-que-viveu-101-anos-nas-ruas-sonha-em-celebrar-o-natal-pela-1-vez.html

O ⁠⁠⁠⁠⁠⁠Notícia em áudio⁠⁠ é um podcast do⁠ jornal ⁠Estado de Minas⁠⁠ ⁠⁠⁠⁠que lê, aos sábados e domingos, uma grande reportagem para você ouvir no seu tempo. Sem deixar que a pressa do dia a dia atrapalhe a imersão no tema. Afinal, uma boa história merece ser contada e recontada muitas vezes. E em vários formatos.

Reportagem e Locução: Maria Antônia Rebouças
arte sobre foto de Túlio Santos/EM/D.A Press
Coordenação: Rafael Alves

#podcast #noticiaemaudio #bh

Categoria

🗞
Notícias
Transcrição
00:00Olá, eu sou Maria Antônia Rebouças e esse é o Notícia em Áudio, um podcast do jornal
00:05Estado de Minas, que lê aos sábados e domingos uma grande reportagem pra você ouvir no seu
00:10tempo.
00:12O texto de hoje é de minha autoria.
00:15O homem que viveu 101 anos nas ruas de Belo Horizonte.
00:19Uma história que começa debaixo do viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte, e atravessa
00:24mais de um século de vida.
00:25Essa é a história de Joel Pereira Gonçalves.
00:29Com 108 anos de vida, o homem negro, com em torno de 1,65m e cabelos crespos, recebe a
00:35reportagem apoiada em uma bengala.
00:38Joel viveu 101 anos nas ruas da capital mineira.
00:41Sim, você ouviu certo, mais de um século sobrevivendo entre calçadas.
00:46Hoje, ele mora em uma pensão no bairro Santa Efigênia, por conta da idade avançada.
00:51Seu quarto é pequeno, simples, e tem uma cama, um armário e uma TV.
00:56Ao receber a equipe, ele faz questão de pedir pra contar a história do começo.
01:01Os pais, que também viviam nas ruas, acabaram morrendo quando ele tinha apenas nove anos.
01:07Na infância dura das calçadas, ele conta que sempre viu de perto a violência, o abandono
01:12e a solidão.
01:13Mas mesmo assim, nunca quis saber de abrigo.
01:16Pra quem anda direito, qualquer lugar é lugar, disse ele.
01:19Joel perdeu a mãe por conta de uma picada de escorpião.
01:23Descrita por ele como uma morena forte, Maria de Lourdes sempre protegeu o filho.
01:28E ele relembra emocionado as últimas palavras dela.
01:32Ela disse, não se mete em coisa errada, não deixa fazerem coisa errada com você
01:36e você pode saber que de onde eu estiver, estarei lhe olhando.
01:40Aí depois ela morreu, levaram e nem enterro teve.
01:44Relembra Joel.
01:45Viver nas ruas, em 1930, exigia bastante.
01:50Um dos mais marcantes capítulos da sua vida aconteceu quando ainda era adolescente, com
01:5515 anos.
01:56Ainda em BH, ele se lembra de um dia em que um moço chegou debaixo do viaduto e disse,
02:01ô menino, como você se chama?
02:04Não quer dar um passeio, conhecer São Paulo?
02:06Relembra.
02:06Sem saber do que se tratava, Joel diz que, por inocência, aceitou a proposta e entrou
02:12no carro do homem.
02:13Mas o que parecia uma aventura acabou se transformando em um pesadelo.
02:17Joel não foi conhecer São Paulo.
02:19Na verdade foi sequestrado e obrigado a trabalhar, escravizado, em uma fazenda em Aparecida do
02:25Tabuado, município do Mato Grosso do Sul.
02:27Me lembro de pegar uma balsa e chegar em uma fazenda.
02:31Lá um capataz me mandou pra uma casinha de sapê, onde tinha muita gente, com correntes
02:37nos pés e nos braços.
02:39Aí me mandaram tirar a roupa, me deram uma tanga e colocaram um monte de correntes em
02:44mim também, até no meu beiço.
02:46Relembra Joel.
02:48Ele viveu, então, semanas de horror.
02:50Colocaram uma argola no meu pescoço e me deram uma inchada.
02:53Tinha muita gente, homem e mulher, cavucando um barranco.
02:58E um capataz, um cavalo, ficava gritando, vamos gente, cansa não, senão tem chicote.
03:03Ele batia em quem não trabalhasse.
03:06Foi então que uma mulher, que ele se relembra ser a dona da fazenda, prometeu ajudá-lo.
03:11Ela me disse, não reaja, fica quieta e obediente que eu vou tirá-lo daqui.
03:15Na noite seguinte, Joel foi acordado no meio da madrugada pra fugir.
03:19Ela me acordou e me pediu silêncio, abriu as correntes e achirou de mim.
03:24Me mandou entrar em um caminhão que ia levar capim pra cidade.
03:27E ele relembra as instruções.
03:29Fique encolhido, porque se te encontrarem vão te bater muito, matar e jogar para as piranhas comerem.
03:36Ele se lembra de estar tremendo como vara verde.
03:39Mas se encolheu em meio a capim gordura, grosso, cheio de carrapatos que o mordiam durante o trajeto.
03:45O capataz revirou a carroceria inteira com um garfo gigante.
03:48Por um milagre, não me viu.
03:49Joel conseguiu sair da carroceria escondido e chegar na estação de trem, onde pulou em um vagão, como foi instruído, e desceu em São Paulo.
03:57Lá, ele foi recebido por outra mulher, que o ajudou a embarcar pra Belo Horizonte.
04:02Ele conta emocionado que a moça era muito parecida com a falecida mãe, e que naquele momento ele só conseguia agradecer.
04:08Joel voltou pra BH.
04:11No dia a dia, oferecia para carregar as sacolas das senhoras que saíam do mercado central, e em troca pedia dinheiro ou alimento.
04:18Meio desconfiadas, elas ajudavam.
04:21Só lembro de ganhar umas notas que tinham do ar vermelho.
04:23Conta Joel.
04:24Que também garante que mantinha suas coisas em ordem e cozinhava em uma pequena fogueira os alimentos que ganhava.
04:30Como ali perto do viaduto tinha muitos trabalhadores, por conta da construção da estação de trem,
04:35Naquela época, muita gente parava pra comer comigo, e eu também ganhava algumas coisas.
04:40Ele conta que durante um período, viveu em uma barraca de praia.
04:44Mas não passou todo o tempo sozinho.
04:46Ele se lembra de uma moça, descrita por ele como bonita, dos olhos verdes, com quem dividiu as ruas por um tempo.
04:52Ela ficava rodeando minha barraca e perguntava
04:55Como é que você não arruma uma companheira, uma mulher pra ficar com você?
04:58E eu não entendia nada disso, de ter companheira.
05:01Mas ela me ensinou, sabe?
05:03E acabou ficando comigo.
05:05Depois de um tempo, a companheira engravidou, de gêmeas.
05:09Sem condições de criar as crianças, Joel registrou as filhas e entregou para uma mulher,
05:14Que se ofereceu para criá-las em São Paulo.
05:16A dona disse que se um dia eu quisesse ver as meninas, poderia pedir.
05:20Elas eram duas, iguais à mãe.
05:23A companheira acabou sumindo depois que as bebês foram levadas, e ele se viu novamente sozinho.
05:29Joel chegou a ver as filhas algumas vezes, mas depois de um tempo perdeu contato.
05:33Até hoje, quando eu tô sozinho, eu vejo as meninas na minha frente, como se elas estivessem ali comigo.
05:38Acho que fiz o melhor pra elas, porque se for pra sofrer, sofre um.
05:41E esse um sou eu.
05:43Quis dar uma oportunidade pra elas, algo que eu não poderia dar na rua.
05:46Hoje, vivendo na pensão, ele conta que ainda tem planos para o futuro.
05:51Tenho o sonho de me casar, que nem gente, na igreja.
05:54E também conta o desejo de cuidar da saúde e melhorar a qualidade de vida.
05:59Quero fazer minha cirurgia de glaucoma pra enxergar direito e poder ir num forró.
06:03Eu adoro ver o povo dançar.
06:04No entanto, há um sonho que pra ele permanece inalcançável.
06:08Sabe uma coisa que eu nunca tive na vida?
06:10Um Natal e um Ano Novo.
06:12Nunca passou isso pela minha cabeça.
06:13Mesmo com 108 anos, vividos longe das comemorações, do convívio familiar e do conforto de um lar,
06:20Joel mantém a esperança de um dia poder celebrar as festas de fim de ano com fartura e companhia.
06:28A íntegra dessa reportagem foi publicada no jornal Estado de Minas em 23 de dezembro de 2024.
06:35Acompanhe as notícias mais importantes para o seu dia a dia em nosso site, em.com.br.
06:40E siga a gente no WhatsApp para atualizações urgentes.
06:43Até a próxima notícia em áudio.

Recomendado